quarta-feira, 27 de março de 2013

O cabelo da nega

Sabendo que a Laura viria para uma família de brancos, para uma região de predominância branca, não nos surpreendeu que ela fosse a única criança negra da escola. Aliás, ela é a única criança negra em vários lugares. E já tive que ouvir muitas vezes, ao fazer essas observações acima, que não devemos vê-la como uma criança NEGRA. Ela é apenas uma criança igual às outras, que perceber isso só faz com que alimentemos o racismo dentro de nós. Oi?

Sempre saio com a sensação de que me chamam de racista pelo simples fato de VER a minha filha como ela é! Ver sua cor, reconhecer sua raça e valorizar a cultura de seus antepassados, tudo isso faz parte de uma luta de séculos pela visibilidade negra. Se eu, caucasiana, opto por ignorar esse "detalhe", estou corroborando para aquela tática estrategicamente cega que predomina o nosso mundinho safado: "racismo não existe mais".

Assim, tratamos de trabalhar muito bem a autoestima da nossa fofolete, enaltecendo todos os atributos pessoais e referentes à raça. Vamos combinar que isso não dá muito trabalho, visto que minha filha é linda de morrer (cof cof).

E um dos alvos principais do racismo cotidiano é, sem dúvida, o cabelo afro. Gente como o povo se incomoda com a revolta dos cachos! O cabelo dela é lindo, cheio de personalidade, super versátil, permite um sem número de penteados, fica bom de qualquer jeito, não tem dia ruim, não tem problema em ficar armado, não precisa lavar todos os dias, etc. São tantas qualidades que não consigo mais ter tolerância com comentários adversos.



Mas eles acontecem, pois não tenho como impedir a proliferação da ignorância do povo. E acontecem tão agressivamente sob sorrisos "amigáveis" que nos deixam, muitas vezes, sem resposta. Parece que eles têm o poder de entalar um caroço na nossa garganta, impedindo-nos de sair em defesa do absurdo para que eles possam seguir suas vidas medíocres balançando seus cabelos lindos.

Um dia saímos à caça de um espaço para fazer a festa de aniversário da Laura e nos apaixonamos por uma chácara. Uma senhora nos atendeu e mostrou todo o lugar, o tempo inteiro sendo simpática com a Laura, pegando na mão, fazendo-lhe gracinhas. Bem, as mães de plantão aqui vão concordar: quando alguém trata bem nossos filhos, baixamos a guarda e guardamos as garras. E foi assim, durante mais de uma hora passeamos pelo local conversando, volta e meia ela fazia umas perguntinhas sobre adoção, tudo na maior paz. Até que.

Na hora de ir embora, ela solta: "Ah essa Laura é muito linda, pena que quando crescer vai sofrer com esse cabelo". A Camila tirou força do útero para tentá-la ajudar a reparar a indelicadeza: "sofrer para pentear?"
Mas ela não entendeu a deixa e lascou o derradeiro: "Pra tudo! Agora ela não liga, mas quando crescer vai ter que alisar né? Ela não vai querer ficar com esse cabelo quando todo mundo tem cabelo liso bonito".

Aquilo doeu tanto que nos deixou sem ação. Só viramos as costas e saímos, Camila falou algo como "Não teremos esse problema, Laura tem um cabelo lindo e nós adoramos". Até hoje minha cabeça formula respostas destruidoras, mas na hora não conseguimos reagir, tão surpreendente foi aquilo.

O triste disso tudo é que esse não foi nem de longe o único comentário sobre o cabelinho enroladinho da minha nega. E mesmo a gente valorizando e torcendo muito para que ela se curta e tenha a autoestima tão firme quanto uma rocha, dia desses a TV exibia uma insuportável propaganda de chapinha.

Quando vi que a Laura estava muito atenta às imagens de "crespa infeliz, lisa feliz", perguntei: "Laura, quem tem o cabelo mais bonito do mundo?" (esse tipo de pergunta sempre gera a resposta "EUUU!!!" seja qual for o elemento). Mas dessa vez ela demorou um instantinho e respondeu:
- A MAMÃE!!

terça-feira, 19 de março de 2013

Dias de guerra

Há tempos enfrentamos dificuldades à mesa. Laura tem um excelente paladar: gosta de tudo, come de tudo. O problema é a quantidade e a disposição para tal, detalhe que nos deixa constantemente de cabelos em pé.

Recentemente fomos ao médico e descobrimos que ela cresceu um pouquinho, porém perdeu peso - um peso que já era abaixo do normal. A pediatra não demonstrou preocupação, pois os exames mostram que ela está com a saúde excelente. Porém, como fazer o coração de duas mães acreditar nisso? São meses e meses de táticas falidas, conselhos infundados, dicas que não dão certo e, no meio disso, ela alterna entre períodos de jejum absoluto e alimentação reduzida. Tem vezes que apenas um pratinho de comida é a quantidade ingerida durante um dia inteiro.

Para mamães que vivem esse desespero, relato aqui as táticas que já usamos e seus resultados:

- Não sai da mesa enquanto não terminar: essa é a tática dos ancestrais, até a Super Nanny usa. Mas ela não conhece a Laura. A mulinha já passou horas na mesa, já emendou uma refeição na outra sem sair, já dormiu na cadeira, já passou mais de quatro horas sentada sem demonstrar cansaço ou interesse em ceder. Sucesso: 1/10. Tática abandonada por falta de tempo e ineficácia.

- Só vai comer isso e nada mais: outra dica comumente ouvida e lida por aí, ainda a usamos volta e meia. Só funciona de tempos em tempos, se fizer isso dois dias seguidos ela fecha a fábrica e não quer nem saber. Sucesso: 3/10. Tática volta e meia aplicada disfarçadamente, mas em sequência não funciona.

- Castigo: horripilante. Além de não funcionar, é uma das piores que já tentamos. A hora de comer vira um inferno, a gente come mal, ela come mal, choradeira por horas... Aff não recomendo. Sucesso: 0/1000. Tática completamente abandonada (mas já foi resgatada em dias de irritação suprema).

- Empurrar a comida goela abaixo: não, não tenho vergonha de dizer que já tentamos isso sim. Mas que é absurdo, isso sem dúvida! Essa tática é a pior de todas e NUNCA funciona nem tem chance de funcionar, visto que ela rejeita a comida justamente porque está sendo tratada com total agressividade. Sucesso: -2/10. Tática completamente abandonada sem chance de voltar.

- Psicologia reversa: um dia em meio aos seus momentos anorexia forever eu dei um nó na cabeça dela: "se você não comer eu vou tirar o prato e não deixo você comer!". Sim, funcionou perfeitamente. Ela se agarrou ao prato e comeu como se não houvesse amanhã. Eu segurei o riso e comemorei internamente. Mas no dia seguinte tentei repetir o sucesso e... tcharan! Ela já estava vacinada. Sucesso: 2/10. Tática abandonada por inconsistência teórica e prática, mas volta e meia dá pra usar.

- Brincando com a comida: a tática mais amada do Brasil, pois não é agressiva, não é deprimente, é politicamente correta e combina com o nosso estilo de educação positiva. Coloquei a comida em panelinhas de brinquedo com talheres e pratinhos de brinquedo. Ela adorou e comeu tudo! Mas tão feliz quanto veio, foi. Na segunda tentativa ela não achou mais graça. Sucesso: 1/10. Tática abandonada pelo trabalho extra que dá e porque na segunda tentativa quase arremessei os brinquedos na parede.

- Criança não morre de fome com um prato na frente: eu tento provar diariamente que essa teoria é uma mentira descabida! Exageros à parte, claro que não se morre de fome assim, mas morrer não é o único infortúnio de não comer direito né minha gente? Quando a criança se contenta com 100 gramas de alimento diário, você tem que fazer com que esses 100 gramas sejam o supra sumo da nutrição. Mas isso é impossível! Então quem acha que não é estressante passa o telefone do terapeuta. Sucesso: 0/0. Tática abandonada por falta de estrutura emocional das mães.

- Comida não é importante: quando adquirimos certo grau de serenidade decidimos encarar essa tática. A regra da casa mudou: comida não era mais importante, imagine só! Na prática, se a Laura não quisesse comer, ok vá praputaqueopariu lá brincar e me deixe almoçar em paz. Não quer? Tem quem queira! Sucesso: 3/10. Tática não completamente abandonada porque funciona mais do que todas as outras, mas invariavelmente ela deixa de comer no almoço pra depois repetir o lanchinho na escola. Isso me deixa tão irritada que não consigo manter o equilíbrio todos os dias.

- Compensação: eu e muitas mães no mundo odeiam essa tática, pois ela ensina errado - o resultado é que comer é apenas um trampolim para ganhar aquilo que ela realmente gosta - enaltecendo o valor da porcaria da sobremesa ou daquele brinquedo inútil que não agrega nada. Mas vá... Como ninguém é de ferro tentamos algumas vezes. Sucesso: 2/10. Tática não-orgulhosamente usada volta e meia, especialmente em público quando queremos evitar estresse.

- Televisão: também não é nada bonito de se dizer, mas como todo mundo fala que comer na frente da TV engorda, lá fui eu mudar a posição da Laura na mesa para que ela pudesse comer vendo seus desenhos favoritos. Um desastre: ela abstrai tanto que esquece até de mastigar o que está na boca, quanto mais de comer o que está no prato. Sucesso: 0/3. Tática abandonada por falta de adesão das partes.

- Criança que não come não vai pra escola: tem coisa mais horrível do que isso? Pois é, a que ponto chegamos. Mas não criamos essa tática à toa, foi mais por que um dia a hora passava e nada de ela encostar no prato, até que se não comesse logo teria que levá-la para a escola sem almoço. Então saiu sem querer: "Laura se você não comer, não vai pra escola hoje!" Pum. Comeu tudinho em minutos. Achei aquilo uma maravilha, mas fiquei envergonhada pela tática desleal. O problema maior foi quando começou a falhar e tive que bancar o prometido. Sucesso: 5/10. Tática nada recomendada. Funciona, mas nem sempre, e a culpa quando não funciona é imensa.

- Ignorando a existência da pessoa: criança sempre faz tudo para ganhar a atenção de todos, com base nisso resolvemos ignorar seus protestos e seguir conversando e comendo calmamente. No início funcionavam bem, ela via que não ia ganhar nossa atenção e então não fazia sentido seguir com a greve de fome. Mas ficou confuso com o tempo, pois o que fazer ao terminarmos? Deixá-la na mesa até comer tudo ou tirá-la mesmo que não tenha tocado no prato? A elaboração dessa dúvida nos levou para outras táticas inevitavelmente. Sucesso: 3/10. Tática abandonada por si só.

- Cobras e lagartos: desde quando viver sob gritos é bom? Num mundo ideal nunca agimos com agressividade contra crianças, bichos, esposas, mães, etc. Mas o cotidiano é desgracento, faz a gente perder as estribeiras e nesse ponto não é difícil fazer uma descendente de italianos dar seus gritos. Já bancamos o general com a Laura na mesa infinitas vezes, mas é desgastante e, sobretudo, contra os nossos princípios - apesar de funcionar. Sucesso: 5/10. Tática exaustivamente abandonada por que não aceitamos viver nem educar no volume máximo.

- Supervalorização: ao invés de criticar sua não-alimentação, naturalmente passamos a vibrar muito a cada boca cheia. A mesa virou um circo e ela usou muito isso para se safar sem comer. Sucesso: 0/10. Tática abandonada porque parece bonitinha, mas simplesmente não funciona.

- Blablabla: não dizem que conversar é o melhor a fazer sempre? Pois é o que fazemos: conversamos, explicamos o motivo pelo qual ela precisa se alimentar, falamos sobre o quanto é importante ela encher a barriguinha, contamos historinhas sobre crianças que comem e crianças que não comem, oferecemos a chance de ela fazer uma escolha, parabenizamos quando faz a coisa certa, tornamos a explicar quando não faz... Sucesso: -/-. Tática usada sempre para tudo, mas sem qualquer sinal de que funciona - apenas seguimos fazendo porque acreditamos que um dia quem sabe.

- Insistir mas não forçar: ninguém para pra pensar no quanto essa tática é contraditória. Se você oferece um alimento e a criança diz não, ao insistir ela falará não novamente, e aí você terá duas escolhas: ou forçar ou deixar pra lá. No caso da Laura, cada negativa dela que aceitamos é um perigo, pois ela passa a dizer mais nãos ainda! E se não podemos forçar, mas também não podemos ceder, como insistir então? Sucesso: 0/10000000. Tática abandonada por sua inviabilidade prática.

- Mão na cintura e contato visual: essa é a tática campeã. Consiste apenas em parar ao seu lado em pé de mão na cintura olhando fixamente para os seus olhos. Eu não sei o que ocorre, mas em minutos ela baixa a cabeça, pega o talher e come. Sucesso: 10/10. Tática ótima, porém abandonada por que Laura chegou ao ponto de só enfiar a porra do garfo na boca depois de travar essa batalha silenciosa TODAS AS VEZES, nos obrigando a passar a refeição inteira parando, levantando, esperando ela comer, tornando a sentar, depois levantando novamente, parando, etc. Aí não né?

Atualmente ela come melhor do que antes, mas ainda gosta de dar trabalho nesse quesito. O fato é que nenhuma tática funciona isoladamente, e nada dura por muito tempo.

Hoje depois de horas de briga para beber meia canequinha de leite, muito choro e frustração de ambas as partes, resolvi que era hora de fazermos as pazes. Depois de conversar muito, abracei minha magrelinha e senti o corpinho dela sacudir num soluço... Ela se agarrou em mim e falou: "Pupa... sim mamãe". Com isso quis dizer que entendeu o que eu falei e pediu desculpas. Quase chorei.

Ah maldita maternidade rs

terça-feira, 5 de março de 2013

Ignorância se resolve com informação

No post anterior prometi que explicaria o motivo da reunião que tivemos com a psicopedagoga da escola da Laura.

Bem. Quando chegamos para deixá-la no segundo dia, logo na recepção nos pediram que aguardássemos, pois a psicopedagoga gostaria de conversar conosco. Certo, vamos deixar a Laura entrar e aguardamos ok? Não, a orientação era para que nós três esperássemos.

Azedei.

Aliás, azedamos. No dia anterior eu havia preenchido o cadastro da Laura, onde questionavam sobre as condições de saúde dela e necessidade de uso de medicação. Eu informei claramente que ela é soropositiva, mas que os remédios não eram administrados durante o período da escola. Não havia dúvidas de que nos chamaram por esse motivo. Caso contrário, por que pediriam para fazer a criança esperar também?

Estávamos convictas de que iriam negar a matrícula da nossa pimpolha. E a ideia de que isso estava prestes a acontecer nos encheu de ódio. Ficamos lá sentadas esperando e cochichando sobre o que faríamos, já planejando processar a escola por discriminação.

Quando a mulher chegou e nos chamou para conversar no reservado, entramos armadas, prontas para a briga. A ppdgoga senta, escolhe palavras e solta a primeira frase:
- Bem mães, eu chamei vocês aqui porque gostaria de falar sobre a situação diferente da Laura...
Fuzilando-a com os olhos perguntamos:
- Qual situação: ela ser filha de duas mães, ser negra, adotiva ou HIV+?
- HIV+.

Silêncio da nossa parte. É ela quem quebra o ar ao meio dizendo:
- Bem. Nunca tivemos um caso desses na escola e temos certeza de que podemos resolver da melhor forma. Apenas as chamei aqui, pois não entendo nada sobre o assunto. Quando li o cadastro da Laura já fui pesquisar na internet sobre o HIV+, sobre os cuidados necessários, etc. Queremos garantir que a Laura não seja privada de nada por conta disso. Então me falem sobre a situação dela, se há complicações, privações, atenção especial...

Ouvimos aquilo com um misto de alívio e estranhamento. Não esperávamos pelo melhor, isso é fato. Explicamos como funcionava viver com HIV no caso da nossa pequena, os cuidados médicos, os remédios, a alimentação, etc. Resumindo, explicamos que ela vive uma vida perfeitamente normal, pois não é doente, apenas é portadora de um vírus que está lá quietinho, indetectável, controlado. A Laura tem gripe, tem febre, dor de barriga como qualquer criança. E também corre, pula, brinca e quer aprender como qualquer criança. Ela já sofreu muito por isso no seu curto início de vida (conto em outro post - olha aí mais uma promessa), e mais do que ninguém merece todo o amor do mundo.

A profissional garantiu que nossa boneca teria o mesmo tratamento das outras crianças, se desculpou por sua ignorância no assunto e, assim, nos colocamos à disposição para esclarecer qualquer dúvida que surgisse. Ao final, aprendemos 3 coisas:
1. Quando a ignorância não vem travestida de preconceitos e moralismos, a informação é o melhor remédio.
2. Não devemos esperar sempre o pior, às vezes as pessoas podem surpreender.
3. Somos definitivamente mães leoas rs

Parece final feliz de livrinho infantil, mas foi bem assim que aconteceu mesmo. A escola não é perfeita, mas essa naturalidade com que recebe uma criança filha de casal homoafetivo, essa atitude transparente ao abordar o HIV+, um assunto tabu em nossa sociedade até hoje, tudo isso conta pontos.